O impacto da literatura de Guiomar deriva precisamente de uma descida aos infernos, de um retorno às origens, ao magma do inconsciente, às trevas primeiras onde os opostos se anulam. Dante, experimentado viajante desses mundos inferiores e de outros mais altos, pôs no pórtico infernal uma inscrição aconselhando a deixar toda esperança os que ali adentrassem. Semelhantemente, o leitor aqui deve abandonar a confortável condição de diletante e aceitar temporariamente o papel de neófito, perplexo mas fascinado diante de um mundo que se mostra na luz crua da tragédia. Pois é do trágico que estes contos falam. Corpo de Cristo, Sangue de Dioniso. E se o corpo destas narrativas se constitui com a matéria pobre do cotidiano, nas antiperipécias de mulheres provincianas, donas de casa, professores universitários mais ou menos amorfos, o seu sangue brota das fontes da tragédia clássica: catarse e celebração. O erótico se faz, como nas origens, cadinho das transformações, trampolim para o autoconhecimento. Nele tudo se funde e se depura. Tudo converge para o limite, para o desmascaramento, para o êxtase. Daí a crise, o desmonte dos personagens, a ironia persistente com que estes se fustigam em busca de sínteses mais satisfatórias. Daí também a presença obsedante da mulher, mulher esfinge, espelho que convida à introspecção. Com estes contos Guiomar paga um tributo a Dioníso, o deus nascido de uma carne mortal, votada à dissolução, o deus das metamorfoses e transformações, o deus da vida.